Semana da Mulher: Conheça a mãe, esposa, ativista e viajante, Vitória Bernardes
Atualizado: 10 de mar. de 2022
O discurso de que mulheres representam o sexo frágil caiu por terra há muito tempo, mas a luta por direitos ainda está longe de acabar. Para falar sobre a força e essência de ser mulher, convidamos a Vitória Bernardes. Ela é mãe, esposa, psicóloga, militante de Direitos Humanos e conselheira no Conselho Nacional de Saúde.
Vitória conta que se tornou uma mulher com deficiência aos 16 anos de idade em decorrência de uma bala perdida. "Fui usar o telefone público em frente à casa da minha avó, na mesma calçada funcionava um armazém. Naquele momento houve um assalto, o dono do estabelecimento reagiu e eu acabei sendo baleada."
A psicóloga teve uma lesão cervical medular e ficou 3 meses na UTI. "Não foi apenas a perda dos movimentos, eu corri risco de morte por um período significativo. Foi um choque."
A militante de Direitos Humanos relata as primeiras dificuldades ao se tornar uma pessoa com deficiência. "O repertório que eu tinha sobre pessoas com deficiência era cheio de estigmas e capacitismo. Me reconhecer nesse corpo foi um processo bem longo. A partir dessa lesão eu experenciei o quanto os espaços e estrutura social não são preparados, não querem ser preparados e nem pensados para pessoas com deficiência."
Vitória relata o preconceito sofrido por ela em vários sentidos. "A descriminação sobre nossos corpos é naturalizada. As pessoas não se constrangem em reproduzir falas capacitistas."
A psicóloga que está há mais de 10 com seu marido, conta que as pessoas enxergam o companheiro como um anjo, pelo simples fato dele ser casado com uma mulher com deficiência, ou que o questionam, perguntando como ele pode estar com alguém nessas condições. "Existe uma dificuldade de perceber uma mulher com deficiência como alguém que também pode ser desejada. Mas ao contrário disso, eu me vejo uma pessoa interessante e que pode ter um relacionamento saudável e de parceria."
Vitória alerta sobre os perigos que a cobrança imposta pela sociedade por um relacionamento podem trazer sobretudo para a vida da mulher com deficiência. "O que muitas vezes acontece é a imposição machista e patriarcal de que a pior coisa que pode acontecer para uma mulher, é não ter um homem do lado, e isso coloca muitas mulheres com deficiência numa situação de vulnerabilidade e violência."
Ela explica que se essa mulher pontua que está sofrendo violência, significa frequente ter falas como: "pelo menos ele te aceita como você é" ou "esse é o preço que você paga, apanhar para não estar só."
Gravidez e maternidade
Vitória é mãe da Lara, que está com 9 anos. A gravidez foi um processo em que ela mesma não conseguia se perceber nesse lugar da maternidade. "O olhar das pessoa sobre o meu corpo é sempre de um corpo incapaz, quebrado. Um corpo que não tem potencial. De alguma forma eu internalizei isso de que a maternidade não era pra mim, mas eu não sei até que ponto a ideia de não ser mãe era realmente minha ou se no fundo era melhor não pensar nisso porque não seria capaz."
Quando engravidou, Vitória se reconciliou com seu próprio corpo e passou a entender toda sua potência. "Percebi o quão incrível é a possibilidade de estar viva e sentir uma vida dentro de mim."
Sobre ter ajuda de outras pessoas, a psicóloga conta que se privou muitas vezes de solicitar apoio externo com receio de ser julgada. "Pensei que seu eu pedisse algum auxílio iria ter uma cobrança de que eu estou pedindo porque eu sou incapaz de ser mãe. Enquanto a gente vê que o cuidado compartilhado é tão grandioso e necessário. Quantas mulheres precisam de apoio seja de uma profissional (quando tem condições de pagar) ou de uma familiar, amiga, vizinha..."
Além da necessidade em ter uma rede de apoio, Vitória ressalta a importância da maternidade ser reconhecida como um trabalho. "Eu não dou conta e eu acho difícil encontrar alguma mulher, independente de deficiência ou não, que dê conta, e o quanto ela se deixa de lado e compromete sua saúde, principalmente a mental. Por isso é importante falar sobre cuidado compartilhado ao invés de questionar se a mulher é ou não capaz."
Sobre preconceitos que enfrenta na maternidade, a psicóloga conta que quando sua filha ainda estava com 6 meses, algumas pessoas a paravam na rua e diziam. "Você vai cuidar da mamãe", no sentido de que um bebe recém nascido poderia cuidar da mãe julgada como incapaz, mas que uma mulher com deficiência não poderia cuidar de um bebê.
O feminismo e a mulher com deficiência
A ativista afirma ter um compromisso ético e político com o feminismo e que busca de fato romper com toda a construção social perversa sobre os corpos de mulheres com deficiência.
Comprometida com a busca por justiça social e igualdade de direitos, Vitória explica a importância da mulher com deficiência dentro do movimento. "O feminismo precisa ser construído também por mulheres com deficiência. Nossos corpos trazem necessidade de mudança e revolução."
De acordo com a psicóloga , muitas vezes mulheres com deficiência esperam que o feminismo as acolham, mas para que isso realmente aconteça é preciso lutar. "Como qualquer movimento social, o feminismo é um movimento de disputa de narrativa e reivindicar nossa existência, ainda temos um caminho muito longo para pautar o feminismo através da nossa perspectiva."
Segundo ela, é importante que se questione a ausência de mulheres com deficiência nos espaços de participação. "A cada 4 mulheres brasileiras 1 tem deficiência e será que estamos nos coletivos nessa mesma proporção? É um questionamento que deve ser feito por todas as pessoas que se propõe aliadas e, para além disso, é preciso que reflitam sobre as razões da nossa ausência. É necessário também o apoio e a construção de espaços que acolham a nossa presença. Política é um exercício e historicamente fomos impedidas de fazê-lo. É essencial que tenhamos pessoas que nos encorajem, compartilhem conhecimento e que ouçam nossas demandas, não para falar por nós, mas para que fortalecer nossas vozes."
companheiras e se não tiver, por que não tem? É necessário também apoiar essa construção. Política é um exercício e quando a gente não tem possibilidade de participar historicamente disso, é essencial que tenhamos pessoas que nos encoraje, compartilhe conhecimento e que ouça nossas demandas e nos apoie para nos fortalecer, não para falar por nós, mas perguntar o que pode ser feito."
O turismo acessível precisa contemplar diversos corpos
Vitória contou que adora viajar, mas que não se sente representada nas peças publicitárias sobre turismo, assim como não sente que recebe o suporte essencial para realizar suas viagens, seja pelos meios de transportes, ou hospedagens.
"Quando falamos de turismo acessível o repertório é muito pequeno, as empresas se limitam colocando uma rampa para o cadeirante. A deficiência é composta por diferentes corpos."
De acordo com a ativista, o sistema capitalista não entende corpos com deficiência como exploráveis. "O sistema em que vivemos acredita que não vale a pena investir nesses corpos e supõe que essas pessoas não possuem o dinheiro necessário para pagar pelos seus serviços. Viagens são pensadas como algo a ser consumido e não como um direito de conhecer novos lugares, perspectivas e culturas."
Vitória, que já foi impedida de de viajar com as baterias de sua cadeira de rodas motorizada, mesmo as mesmas sendo adequadas, pela Companhia Azul, relata que os serviços não foram feitos para pessoas com deficiência. "É um espaço que, através das atitudes principalmente, passam a mensagem de que não somos normais, de que não somos feitos para aquele lugar. Que até aturaram nossa presença, mas no fundo, não era para estarmos ali."
Segundo a psicóloga, se dependesse dos lugares serem acessíveis, nunca sairia de casa. Ela conta que o lugar com menos acessibilidade que visitou foi a cidade de Brasília. "Não tem nem como andar na rua, a cidade foi toda projetada para carros, andar pelas ruas da cidade é um risco. Também passei por um situação ao me hospedar em um hotel, liguei antes para me informar sobre acessibilidade, mas quando cheguei lá a cadeira de banho não passava pela porta."
Apesar das dificuldades, Vitória encontra muita gente empática no caminho. "Às vezes o lugar não é acessível, mas as pessoas oferecem apoio e tem uma grande receptividade e sensibilidade atitudinal."
Ser mulher em nosso sistema é um desafio, mesmo com os avanços e conquistas, há muito pelo o que lutarmos, principalmente quando se trata de mulheres com deficiência, indígenas, negras, LGBTI+ ou que faça parte de qualquer grupo minorizado. Por isso, especialmente essa semana, desejamos que todas as mulheres encontrem a força necessária para continuar lutando.
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