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Jéssica Paula

Cruzar o Salar de Uyuni, na Bolívia, de muletas

Atualizado: 7 de jan. de 2020





O início parecia despretensioso. O primeiro destino era Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, a apenas 416 metros acima do nível do mar. Até aí, o único obstáculo ao caminhar pelas ruas da cidade eram as muletas, que insistiam em esbarrar nas cholas – mulheres indígenas conhecidas pelas vestimentas tradicionais – que, na maioria das vezes, saem a carregar em suas costas, roupas, utensílios domésticos e, claro, crianças.


Fomos eu e uma amiga, que me acompanhou nessa viagem, até a rodoviária encontrar um jeito de ir para a próxima cidade. “Sucre! Sucre! Sucre!”, gritam os funcionários das companhias de ônibus. Sucre está a 2.810 metros de altitude, e é considerada uma das cidades mais altas da América do Sul. Desde Santa Cruz de La Sierra são 15 horas – a maior parte do trajeto em estrada de terra. Viramos a noite no caminho.


No terminal de Sucre, encontramos dois irmãos brasileiros que compartilhavam do mesmo roteiro. Juntos, bolamos uma estratégia para eu conseguir subir no próximo ônibus. Isso porque o primeiro degrau do veículo ficava na altura do joelho de um ser humano de um metro 1,70m. Eles seguraram as muletas, a mochila, sentei no degrau e me apoiei em uma espécie de corrimão que havia ao lado para me impulsionar e ficar em pé de novo. Claro que os novos amigos deram um empurrãozinho, literalmente. Com o ar já ficando rarefeito, parecia que eu tinha acabado de escalar uma pequena montanha.


Apesar de todos os atrativos de Sucre, além de ser a capital oficial da Bolívia, lá é possível encontrar sítios arqueológicos onde foram descobertas pegadas e ossos de dinossauros, mas não paramos em lugar algum e fomos direto para Potosí. Aí sim, a 4.067 metros acima do nível do mar, um leve passeio pelas ladeiras com a mochila de 80 litros – levando em consideração que meu gasto energético pode ser até três vezes maior, se comparado a uma pessoa sem deficiência – era a conta de dar três passos e já estar sem ar.


Além disso, estávamos em pleno fevereiro e o carnaval da região é marcado por crianças jogando água e sabão através de armas de brinquedo na direção de qualquer desavisado que passasse pela frente. Nem mesmo o par de muletas que tanto me ajuda a ser absolvida de situações perigosas passou ileso.


Pior para mim que não conseguia correr das criancinhas em polvorosa. O jeito foi rir com elas, ameaçar a me defender com as “armas” que tenho, rir mais um pouco e sair da praça na velocidade máxima que conseguisse, de três em três passos e paradas para respirar. Voltamos para a rodoviária e rumamos para duas horas e meia de estrada até Uyuni.


Dignidade Já


Salar de Uyuni: durante o verão se torna um espelho do céu

Chegamos no meio da noite, sem reserva de hotel. Que erro. Apesar do verão, o vento gelado que vinha do topo da Cordilheira dos Andes deixou claro que não seria uma noite fácil. Pedimos para um taxista nos acompanhar na saga de encontrar um canto digno para dormir – sobre digno entende-se uma cama com um banheiro próximo. A essa altura, já tínhamos rodado 850 km, por estradas de terra, serras, e penhascos sem parar! Dormindo nos ônibus há quase três dias e… sem banho. Surgiu aí o grande bordão da viagem, estendíamos a mão pedindo “dignidade já!”


Acontece que, por ali, hotéis com chuveiro elétrico são raros e estavam esgotados devido à alta temporada. Encontramos uma pousada que prometeu ter banho quente e a exata quantidade de vagas que precisávamos. Lindo.


O aquecimento do chuveiro vinha por meio de um botijãozinho de gás que deixava o banho, com sorte, menos frio. No chão, um balde com água morna já anunciava que iríamos usar uma caneca pra completar o serviço. Como não tenho equilíbrio suficiente para agachar várias vezes, peguei uma cadeira, me sentei e tomei minha ducha de balde.


"Deficiente sobe em pedras?"


No dia seguinte, o Salar. Encontramos outros dois brasileiros e fechamos um 4×4 através de uma agência. O pacote dá direito a três dias por diferentes desertos até chegar a San Pedro do Atacama, no Chile. Alugamos o carro e o guia vem embutido. Passamos por vulcões, desertos de areia, de pedras, de sal, gêiseres e muitas lagunas.


Nesse dia, percebi que se quisesse aproveitar o máximo de qualquer experiência pelo mundo, teria de deixar orgulho e vaidade de lado e fazer algo incrível: pedir ajuda. Me recordo das inúmeras vezes que deixei de subir em uma pedra, fazer uma trilha, caminhar por uma praia, por parecer que sou muito “deficiente”, por medo do que as pessoas iriam pensar, por vergonha dos trejeitos que preciso fazer para que meu corpo torto alcance algum lugar.


Eis que guia para o carro no meio de uma estrada de terra com pedras enormes envolta. A menor delas tinha altura suficiente para encobrir o carro com uma pessoa de pé em cima dele. Todo mundo que estava dentro do 4x4 nem pensou na hora em que disseram que podíamos apreciar a vista do lugar, foram direto escalando as pedras do jeito que dava. Eu fiquei no solo, embaixo, com cara de cachorro que caiu da mudança, triste por não poder subir. Mas me recusei a pedir ajuda. De repente, Sandro, um dos brasileiros que estavam no carro, surge de "além-pedras", olha pra mim e diz "ah, você vai subir sim", me colocou no colo e quando dei por mim, estava observando as cordilheiras de um jeito que nunca havia visto antes.







Ali, aprendi que ser independente nada tem a ver com fazer tudo sozinho. É reconhecer seu corpo, entender seus pontos de equilíbrio e saber que às vezes você precisa de um empurrão, uma cadeira ou dos braços de alguém que você acabou de conhecer. É entender a hora em que se precisa do outro. Ainda que eu embarque sozinha, não conseguiria desbravar o mundo sem ajuda – sendo uma pessoa com deficiência ou não. A gente não precisa quebrar nossas muletas. A gente só precisa aprender a andar com elas.






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